Rainer Maria Rilke, Teixeira de Pascoaes, Mário Beirão e Jorge Vicente

No dia 21 de Abril de 2012 realizou-se mais um encontro de Poetas Aqui. Connosco. Filipe de Fiúza apresentou a todos os presentes no Ateliê CriArt um pouco da vida e obra do poeta alemão Rainer Maria Rilke e dos poetas portugueses Teixeira de Pascoaes e Mário Beirão. O poeta sintrense Jorge Vicente foi o convidado do Poetas Aqui. Connosco de Abril 2012.


RAINER MARIA RILKE - Poeta Estrangeiro





Leitura integral do poema Nascimento de Vénus:

Nascimento de Vénus

«Esta manhã, depois que a noite inquieta
esmoreceu entre urros, sustos, surtos _
o mar ainda uma vez se abriu e uivou.
E quando o grito aos poucos foi cessando
e do alto o dia pálido emergente
caiu no vórtice dos peixes mudos_
o mar pariu.

Ao sol reluzem os pelos de espuma
do amplo ventre da onda, em cuja borda
surge a mulher, alva, trêmula e úmida.
E como a folha nova que estremece,
se estira e rompe aos poucos a clausura,
ela vai desvelando o corpo à brisa
e ao vento intacto da manhã.

Como luas erguem-se os joelhos claros,
réstias de nuvens soltam-se das coxas,
das pernas caem pequeninas sombras,
os pés se movem bêbados de luz,
vibram as juntas como gorgolhantes
gargantas.

Na taça da bacia jaz o corpo,
como um fruto na mão de uma criança,
o estreito cálice do umbigo encerra
tudo o que é escuro nessa clara vida.
Em baixo alteiam-se as pequenas ondas
que escorrem, incessantes, pelas ancas,
onde, de quando em quando, a espuma chove.
Porém, exposto, sem sombras, emerge,
como um maço de bétulas de abril,
quente, vazio e descoberto, o sexo.

A balança dos ombros paira, ágil,
em equilíbrio sobre o corpo ereto
que irrompe da bacia como fonte
vacilante entre os longos braços fluindo
veloz pela cascata dos cabelos.

Então bem lentamente vem o rosto:
da sombra estreita da reclinação
para a clara altitude horizontal.
Após o qual fecha-se, abrupto, o queixo.

Eis que o pescoço surge como um fluxo
de luz, ou talo, de onde a seiva sobe,
e se estiram o s braços como o colo
de um cisne quando busca a ribanceira.

Então, da obscura aurora desse corpo,
ar da manhã, vem o primeiro alento.
No fio mais tênue da árvore das veias
há como que um bulício e o sangue flui
a sussurrar nas fundas galerias,
e essa brisa se expande: agora cresce
com todo o hausto sobre os peitos novos
que se intumescem de ar e a impulsionam,
e como velas côncavas de vento
levam a jovem para a praia.

Assim aportou a deusa.
Atrás dela, pisando a terra nova,
lépida, ergueram-se toda a manhã
flores e caules, quentes, perturbados,
como num beijo. E ela foi e correu.

Porém, ao meio dia, na hora mais intensa,
o mar se abriu de novo e arremessou
no mesmo ponto o corpo de um delfim.
Morto, roxo e oco.»

Versão em alemão:


Leitura integral da Primeira e Oitava elegia da obra As Elegias de Duíno:



Excerto da Oitava Elegia:

«Com todos os olhos a criatura vê
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como que ao contrário e envolvem-na toda
como armadilhas em volta da sua saída livre.
O que no exterior está, sabemo-lo apenas através da face
do animal; pois já em pequena
voltamos a criança e obrigamo-la a olhar para trás,
para a Forma e não para o Aberto, tão
profundo na fisionomia do animal. Liberto da morte.
Nós vemo-la, só nós; o animal livre, pelo contrário,
tem atrás de si o seu declínio
e diante de si Deus e quando avança, avança
para a eternidade, tal como jorram as fontes.»




Leitura partilha de excertos da obra Frutos e Apontamentos, entre os quais:

«58

Paremos um pouco. Conversemos.
Esta noite, sou ainda eu que paro -
e sois vós, ainda, que me escutais.

Mais longe, outros brincarão
a fazer de vizinhos, nesta estrada,
à sombra destas árvores que nos damos.»


TEIXEIRA DE PASCOAES - Poeta Português Conhecido





Leitura dos poemas Elegia do Amor, Senhora da Noite e Os Montes.

Elegia do Amor


«I

Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.
Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro.
Olhavas, descuidada
E triste… Ainda hoje te escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem a tua voz,
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim,
N a escuridão completa!
Ouço-te em minha dor,
Ouço-te em meu desgosto
E na minha esperança
Eterna de poeta!
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor,
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes.
Hora santa e perfeita,
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma,
Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos…

Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção
E o pó melancolia.
Falavas duma estrela
E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto.
Em cada tua palavra,
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve – sim! -,
Te chamaria o céu!
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura,
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava!
Teu corpo fino
E leve (oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava!
Caía-me, na alma,
A neve do teu rosto.
Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra!
E uma vez, quando a noite
Amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
- Que incêndio! – E eu, a rir,
Disse-te: - É a lua cheia!...
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei, sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo;
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu…
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.


II

Um raio de luar,
Entrando, de improviso
No meu quarto sombrio,
Onde medito, a sós,
Deixa, a tremer, no ar,
Um pálido sorriso,
Um murmúrio de luz
Que lembra a tua voz.
O Outono, que derrama
Ideal melancolia
Nas almas sem amor,
Nos troncos sem folhagem,
Deixa vibrar, em mim,
Saudosa melodia,
Dolorida canção,
Que lembra a tua imagem.
A noite, que escurece
Os vales e os outeiros,
E que acende, num bosque,
A voz do rouxinol
E a estrela que protege
E guia os pegureiros;
A lágrima do céu
Ao ver morrer o sol,
Acorda, no meu peito,
Infinda e etérea dor,
Que à memória me traz
Aluz do teu olhar.
Tudo de ti me fala,
Ó meu longínquo amor:
As árvores, a névoa,
Os rouxinóis e o mar.
Se passo por um lírio,
Às vezes, distraído,
Chama por mim, dizendo:
„Oh! Não te esqueças dela!‰
Diz-mo também, chorando
O vento dolorido.
Diz-mo a fonte, a cantar,
Diz-mo, a brilhar, a estrela.
E vejo, em toda a luz,
Teus olhos a fulgir.
Como adivinho, em tudo,
A alma que perdi!
Não encontro uma flor,
Sem o teu nome ouvir.
Não posso olhar o céu,
Sem me lembrar de ti!
Por isso, eu amo o pobre,
O triste e a Natureza,
A mãe da humana dor,
Da dor de Deus a filha.
Meu coração, ao pé Dum pobrezinho, reza;
Canta, ao lado dum ninho,
Ao pé da estrela, brilha.
O meu amor por ti,
Meu bem, minha saudade,
Ampliou-se até Deus,
Os astros alcançou.
Beijo o rochedo e a flor,
A noite e a claridade.
São estes, sobre o mundo,
Os beijos que te dou.
Hás-de senti-los, sim,
Doce mulher de outrora.
Ó roxo lírio de hoje,
Ó nuvem actual!
Como dantes teu rosto,
A rosa ainda hoje cora;
Beijo-te, sim, beijando
A rosa virginal.
Teu espectro divaga,
Ao longo dos espaços.
Teu amor, feito luz,
Desce do Firmamento.
Se abraço um verde tronco,
Eu sinto, entre os meus braços,
Teu corpo estremecer,
Como uma flor, ao vento.
Soluça a tua dor
Nas infinitas mágoas,
Que, no fumo da tarde,
Eu vejo, além, subir.
E paira a tua voz
No marulhar das águas,
No murmúrio que sai
Das pétalas a abrir.
Se os lábios vou molhar
Nas ondas duma fonte,
Queimam meu coração
Tuas lágrimas salgadas.
E, quando acaricia
O vento a minha fronte
Eu bem sinto, sobre ela,
As tuas mãos sagradas.
Quando a lua, no Outono,
Envolta em luz funérea,
Morta, vai a boiar
Nas águas do Infinito,
Doira meu frio rosto
A palidez etérea,
Que dantes emanava
O teu perfil bendito.
Quando, em manhãs d`Abril,
Acordo, de repente,
E vejo, no meu quarto,
O sol entrar, sorrindo,
Julgo ver, ante mim,
Teu corpo resplendente,
Tua trança de luz,
Teu gesto suave e lindo.
Descubro-te, mulher,
Na Natureza inteira,
Porque entendo a floresta,
A névoa, o céu doirado,
A estrela a arder, no Azul,
A lenha, na lareira
E o lírio que, na cruz
Do outono, está pregado.
Falas comigo, sim,
Da dor, do bem, de Deus.
Repartes o meu pão,
Amor, pelos ceguinhos.
E pelas solidões
Os pobres versos meus,
Como os pobres que vão,
A orar, pelos caminhos.
És a minha ternura,
A minha piedade,
Pois tudo me comove!
O zéfiro mais leve
Acende, no meu peito,
Infinda claridade;
E a brancura do lírio
Enche meu ser de neve.
Todo eu fico a cismar
Na louca voz do vento,
Na atitude serena
E estranha duma serra;
No delírio do mar,
Na paz do Firmamento
E na nuvem, que estende
As asas, sobre a terra.
Todo eu fico a cismar,
Assim como que esquecido,
Ante a flor virginal
E o sol enamorado.
Ante o luar que nasce,
Al longe, dolorido,
Dando às cousas um ar
Tão triste e macerado.
Todo eu medito e cismo.
Um vago e etéreo laço
Prende-me ao teu imendo
E livre coração,
Que abrange o mundo inteiro
E ocupa todo o espaço,
E que vai povoar
A minha solidão.
Por isso, eu vivo sempre,
Em doce companhia,
Com o pobre que pede
E a estrela que fulgura;
E, assim, a minha alma,
Igual à luz do dia
Derrama-se, no céu,
Em ondas de ternura.
Sou como a chuva e o vento
E a sombra duma cruz!
Lira, que a mais suave
Aragem faz vibrar.
Água que, ao luar brando,
Em nuvens se traduz;
Fruto que amadurece,
À luz dum claro olhar.
Pedra que um beijo funde
E místico vapor,
Que um hálito condensa
Em pura gota de água.
Sou aroma que um ai
Encarna em triste flor;
Riso que muda em choro
A mais pequena mágoa.
Vivo a vida infinita,
Eterna, esplendorosa.
Sou neblina, sou ave,
Estrela, Azul sem fim,
Só porque, um dia, tu,
Mulher misteriosa,
Por acaso, talvez,
Olhaste para mim.»




Canção Final

«Aí vem a noite velhinha,
Erma sombra entrevadinha,
Mal pode andar, de cansada...

Já o dia se avizinha...

E noite, triste e sozinha,
Tão pálida e fatigada,
Da sua longa jornada,
Deita-se e dorme.

A alvorada
É o sono bom da noitinha...

E a noite dorme quentinha,
Na cama que lhe foi dada...

Dorme, dorme, sossegada,
Noite de Deus, sombra minha,
Que o teu sono é madrugada...»




MÁRIO BEIRÃO - Poeta Português esquecido








Leitura do poema Cintra, do qual o seguinte excerto:

«Oh Pena, altar de nuvens sobre a Serra,
Paço de sombras reaes, feito em granito
E seculos de Azul,—olhando a Terra
Das janelas que ogivam o Infinito!

Oh vôo das florestas que se esfólham,
Tontas de ceus, fragancia!
Oh tardas sombras rôxas da Distancia!
Ruinas—noite donde as aguias ólham!

Oh cedros esmanchando as ramarias,
Afofando penumbras!
Crepusculos longinquos de arcarias!
Agua que, ao pôr-do-sol, és múrmura e deslumbras,
Que deslumbras meus olhos, meus ouvidos,
E, incerta de gemidos,
Vaes esculpindo a diafanos lavôres
As pedras onde o sol desmaia e verte côres!

Oh paizagem do Ceu! Cintra! Visão suprema!
Architectura dos accordes dum poëma!
Em ti as mãos do Vento em furia batalharam!
O Genio e a Lenda para alem te perpetuaram!

Oh Graça que desceste á Terra por encanto,
Granitos que, ao luar, sois brancos alabastros,
Ramos verdes, á noite, onde estremecem astros,
Meu canto vem de vós, é para vós meu canto!»

Aceder ao E-book da Obra: http://www.gutenberg.org/ebooks/22468

Foi ainda partilhada uma carta de Fernando Pessoa a Mário Beirão que poderá ser lida na seguinte ligação do arquivo Pessoano: http://arquivopessoa.net/textos/4446



JORGE VICENTE - Poeta Português convidado



Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Mestrando em Ciências Documentais e em processo de formação na Escola de Biodanza de Portugal, tem poemas publicados em diversas antologias literárias, revistas e participa activamente nas lista de discussão Encontro de Escritas, Amante das Leituras e CantOrfeu.

O seu primeiro livro de poesia, Ascensão do Fogo, foi publicado em 2008, sendo seguido por Hierofania dos Dedos, editado sob a chancela da Temas Originais, em 2009.

Mantém activo um blog: http://jorgevicente.blogspot.com.



Da obra Hierofania dos Dedos:

depois de ti falo só água
catarina nunes de almeida

«depois de ti falo só lágrima
e um ribeiro entre as folhas,
como que a arrancar do lodo
o que resta dos meus dedos.

depois de ti falo dos homens
e das pontes que construíram,
penhascos altos do céu -
olímpicos tronos de estrelas.

depois de ti falo só pranto
e dos homens que aqui ficaram -
a poesia é espada que cega,
sem rosto, promessa velada.»


Da Antologia Amantes das Leitura 2011:


tudo o que é sólido se desfaz no ar
karl marx

«1.

tudo o que é sólido se desmancha no chão
abrindo do sexo o som inaudito
surgindo [fazendo surgir] resplandecendo
do corpo a subtil palavra
que antes representava a realidade

tudo o que é sólido se amanhece
no chão sempre chuvoso
tocando, deixando tocar
deserdando no amanhecido grito
o som do poema de carne

tudo o que é sólido se realiza no canto
o humano, o vivo
os dedos aspirando e recebendo
o som [dionisos] longe longe
de tudo o que a humana razão
compreende.»

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